segunda-feira, 21 de março de 2011

Cardíaco (continuação de "Pequenas Explosões de Cor Caindo")

   Era o mesmo senhor que não via motivos para sair de casa e que, quando considerou essa possibilidade, queimou os olhos com a luz do sol. O mesmo que não abria a janela para evitar que qualquer tipo de alegria alheia, dessas sorrateiras, lhe invadisse a calma e lhe impusesse inveja. O mesmo que não mais levantava da cama por adivinhar o dia vazio e arrastado que teria. mas, um dia, sua cama o traiu e o expulsou. Deixando-o para sofrer de tédio e melancolia durante todo um longo dia.
   Por não ter mais o que fazer levantou-se e tão logo levantou seu estômago ordenou que comesse e, uma vez que acatava ordens da cama e não parecia ter desejos próprios, concordou. Fez café e queimou alguns pães que entregaram no último sábado, calando assim seu estômago. Mas havia ainda muitas criaturas inanimadas com seus desejos próprios à serem atendidos: o chão precisava ser varrido, a louça lavada, o radio ligado, os dentes escovados, o corpo banhando... e, cada vez que realizava um desejo, logo encontrava outro a ser realizado criando um ciclo tão perfeito quanto uma cobra mordendo seu próprio rabo.
   Descobriu-se confortável e quase feliz e logo espantou-se ao perceber que desejava realizar esses desejos. Era seguro.
   No dia seguinte realizou novamente o desejo da cama e levantou-se e quando levantou ouviu o sol lá fora tentando-o a abrir a porta, a sair. Então, abriu-a e fechou os olhos, com medo de tê-los queimados. Logo os abriu intactos e sentiu-se bem. Mas havia ainda um limite claro que mostrava a ele onde era seu lugar. Esse limite era demarcado por um tapete velho, do qual não lembrava ter comprado, que ligava os dois lados da porta. O limite entre seu mausoléu e o resto do mundo.
   Espantou-se ou sentiu medo? Talvez. Mas é certo que suspirou longa e pesadamente e que secou o suor imaginário da testa.
   Vendo-o tão esquisito e entendendo essa reação como sinal de medo, o mundo lá fora o desafiou a cruzar a fronteira. Como um desafio é questão de honra e honrados somos todos nós por direito animados, ele atravessou. Trôpego, com seu passo arrastado, mas atravessou. Fazendo, inclusive, uma brisa admirar-se e por isso acariciar-lhe o rosto.
   Era, após séculos naquela casa que cheirava à cravo e reclusão, o mundo lá fora com seu céu, que mesmo nublado era azul e com seu chão, que mesmo asfaltado era florido. E esse mesmo chão clamou por ser pisado e assim foi, com força e gosto, até que de tanto pisá-lo o velho chegou ao banco de um ponto de ônibus.
   Sentiu-se cansado e então sentou-se. Esse foi o primeiro desejo próprio ao qual consentiu e, talvez, tenha sido o início de todo o problema.
   Ao lado dele sentou-se uma senhora que à primeira vista pareceu-lhe ordinária com seu vestido florido desbotado e levemente puído, seu cabelo branco manchado e sua perna inchada e inquieta que balançava no ar denunciando sua baixa estatura. Mas, aconteceu dela virar para ele o rosto enrugado e pálido. Ele pensou em olhar para longe atrás dela, para que ela não percebesse que ele a encarava, mas, então, escutou seus olhos, os mais castanhos e tristes que já vira. Os mais singulares também, apesar de comuns, pensou. Eles sussurravam "me olhe", menos que sussurravam, como se não tivessem certeza de que queriam ser escutados. Ele os olhou, é claro. Mas, não por ser feliz em acatar ordens e sim por verdadeiramente sentir querer olhá-los.
   Logo o ex-recluso desejou falar, mas sua boca protestou e uma guerra interna de mais de cem anos ocorreu dentro dos segundos que levou para a boca obedecer-lhe e dizer à velha dos olhos castanhos, pernas inquietas e vestido florido um curto "oi". Desse "oi" nasceu outro "oi", desse, um "Tudo bem?" e logo eles estavam conversando por quase uma hora sobre o dia, suas vidas e o ônibus que não chegava. Toda ela parecia falar, os olhos ainda diziam "me olhe", a mão "me toque" e, quando o ônibus finalmente apareceu e ela levantou, sua face, não mais tão pálida, disse "me beije".
   Ele cumpriu todos esses pedidos e foi, novamente, por verdadeiramente querer e não por não ter vontade própria. Era assustador, nada seguro e incrivelmente bom.
   Ao voltar para casa percebeu que algo havia mudado. Os móveis, as roupas e tudo o mais que havia dentro de sua casa tinha mudado de opinião e não mais desejavam que ele agisse de modo que o levasse à sair, a viver o mundo lá fora. Eles tinham medo por ele, mas ele não os escutou e no outro dia saiu. No dia depois também saiu, e no outro após esse também. E continuou a sair todos os dias, dias esses que eram alegres, leves e cheios. Cheios de brisas, beijos e ônibus atrasados. Mas, nada é perfeito. E logo ele percebeu que esses dias eram também finitos, a cobra não queria se morder, preferia, ao invés, se arrastar obscura e insensivelmente para longe, bem longe, no ontem.
   A velha dos olhos castanhos não estava no banco de ônibus e ele sabia que nunca mais estaria. Sabia que nunca mais a veria e odiava ser um oráculo tão infalível. Sentiu dor, muita dor em seu peito. Uma dessas dores que só quem perdeu a esposa num acidente terrível pode ter sentido. A dor que sabia que sentiria se levantasse da cama naquela primeira vez que levantou, a dor que tudo em sua casa sabia que ele conheceria se continuasse à sair de casa, a dor que sentiu por ser estúpido o suficiente pra se deixar amar e, finalmente, a dor de um ataque no coração que o matou no ponto de ônibus e não o deixou nem mesmo depois de ser enterrado como indigente.
   Perdeu o mausoléu perfeito, onde passou grande parte de sua vida, para, depois de morto, ser jogado num valão qualquer.