quinta-feira, 30 de junho de 2011

Alegria em Comprimidos

Estou cansado de meditar,
lutar,
penar
em busca dessa tal satisfação,
estado pleno de alegria,
essa tal paz de espírito.
Nos tempos da tristeza patológica
a alegria vem em comprimidos
e eu quero os meus.
Dou agora adeus aos deprimidos
para me reservar o direito,
mais que divino,
farmacêutico,
de entupir-me de anti-depressivos.

               * * *

Satisfação!
Overdose!
silêncio.

paz de espírito.


Inquieto

   Creio eu ter desde sempre essa sensação, mesmo antes de mudar-me para esse asilo, onde o modo como me comporto tem sido tão incômodo.
   A sensação de que ali, perto da janela onde tem a luz e o calor do sol, estaria melhor. Mas, tão cedo arrasto a poltrona até lá e me sento, a cama passa a me parecer mais confortável, quente e convidativa. Mudo para lá e, no momento em que nela me deito, os bancos do quintal passam a ser o lugar onde quero estar... Assim passava meus dias, alternando de lugar em lugar até que adormecia sem jeito em um lugar qualquer com a certeza de que teria melhor dormido em outro lugar.
   Tudo piorou quando, numa dessas minhas andanças a procura do lugar perfeito topei com uma pedra no quintal, caí e torci o tornozelo. Primeiro achei que isso pudesse ajudar-me com minha inquietação, como num desses tratamentos para viciados onde fica-se privado de drogas por tempo suficiente para que se supere o vício. Mas, não funcionou. Passei terríveis e angustiadores minutos deitado em minha cama, até que aprendi a manipular a enfermeira que incumbiram de cuidar de mim.
   Passei a fazê-la me mudar de lugar quase tão frequentemente quanto antes de machucar-me. Após uma semana importunando a pobre mulher, ela se cansou de mim. Procurei então por outra, essa, depois de somente algumas horas, chamou-me de louco, da forma mais direta e impossível de ignorar possível : gritando grosseiramente, e fez com que me consultasse com um psiquiatra.
   Menti pra ele da forma mais cínica que pude, por medo de ser internado em algum hospício sujo cheio de doentes sinistros de olhos frios como de cadáveres, apesar de quase sonhar com a prescrição de remédios de tarja preta, os melhores. Mas, ainda assim, saí de lá diferente.
   Puseram-me de volta no meu quarto no asilo e me sentaram aleatoriamente na poltrona perto da janela. Percebi que não mais ligava para onde eu estava, mesmo sendo num quarto quente e abafado, exposto à luz e ao calor do sol de um dia de verão no Rio. Deixei-me estar ali. Simplesmente fiquei. Apático. Fingindo acreditar que a cama dura faria minhas costas doerem, fingindo me importar que no quintal me olham estranho, fingindo que precisava mesmo de uma cor. Porque, na verdade, não tinha mais vontades.

domingo, 19 de junho de 2011

Ignorante.

  "Imediatamente, investi contra o mendicante. Com uma só punhalada, tapei-lhe um olho que se tornou, num segundo, grosso como uma bola. Lesionei uma das minhas unhas ao quebrar-lhe dois dentes, e, como, nascido frágil e tendo pouco praticado boxe, não me sentia forte o suficiente para acabar rápido com o velhote, peguei, com uma mão, na lapela do seu casaco e, com a outra, segurei-lhe o pescoço e comecei a bater vigorosamente a cabeça dele contra um muro. Devo reconhecer que tinha previamente inspecionado os arredores e verificado que, naquele subúrbio deserto, estaria, por um bocado de tempo, fora do alcance de todo e qualquer agente de polícia."
(Charles Baudelaire, Espanquemos os Pobres!)

    Era um garoto que pareceria com aquele que estava impacientemente sentado no ônibus com seus fones de ouvido e a música alta demais, não fosse as densas camadas de sujeira, o cabelo selvagem, os trapos encardidos, a fedentina, o olhar desesperançado cheio de ódio e tudo o mais que denunciava seu lugar desfavorável numa hierarquia desumana. Esse garoto entrou o mais sorrateiramente que pode pela porta de trás do ônibus, causando desconforto nos outros passageiros, aqueles que entram pela frente, mas que na verdade nada tem a ver com ele.
   O mais incomodado dos passageiros, não se sabe o porquê, era o garoto dos fones com sua pele fresca do banho, o cabelo bem arrumado para parecer despenteado, as roupas novas tratadas com rigor para que parecessem trapos, o cheiro de perfume que carregava no pescoço e nos pulsos e tudo o mais que mostrava como era estar num patamar um pouco mais elevado naquela, não-mais-tão-cruel, hierarquia. Este olhava forçosamente a janela como se para evitar o desprazer de olhar aquela vítima transgressora do sistema enquanto sonhava esperançoso com o momento no qual ele sairia do ônibus e o desconforto sairia dele. Muito embora não pudesse dar a explicação devida para si mesmo do porquê de tanto mal-estar.
   Ele chegou ao ponto, saiu do ônibus mas o desconforto ficou. Nunca se foi. Mas, por sorte, ele pensaria um dia quando se lembrasse, não só os mendigos são ignoráveis, também o são os males que afetam nosso mundo interno. Mesmo os que o fazem para o bem.