Estava obcecado. Repassava cada pequeno detalhe várias e várias vezes. Fora levado até ali pela raiva, pela mágoa, pelo desespero e pelo amor; maior culpado de todos e lembrava-se da noite, há muito tempo atrás, em que a pediu em casamento. Lembrava que naquele momento o que mais lhe prendia a atenção era a hesitação dela. Seria isso uma espécie de sinal? Deveria ele ter desistido ali, levantado da posição habitual dos que propõem casamento, limpado o joelho de sua calça e desaparecido? Seria ele capaz?
O hesitar. Pensava agora que aquela falta de reação era a prova de que ela nunca o amara. Os dois ali no restaurante preferido dela. Os dois ali bem vestidos para enquadrarem-se a ocasião. E ela, que usava um coque severo e carregava com orgulho o colar caro e extravagante que ele lhe dera, tinha de saber dos planos para a noite.
Era impossível que não soubesse, era parte dela sempre saber. A hesitação fora apenas o tempo que precisou para pesar novamente as consequências de privar-se daquilo que disse tantas vezes sentir por ele, pensou. Mas como estava linda naquela noite. Como era sensual a maneira que ela dizia sussurrando: "Eu te amo". Como a vida era mais fácil quando ele acreditava.
Os sinais! Os sinais eram como fantasmas ignorados por ele. Mas, afinal, houve um sinal que ele foi incapaz de ignorar: a marca de uma boca no seio esquerdo de sua mulher. A boca de outro. Naquela noite, naquela cama e no meio do ato conhecido como o mais íntimo entre duas pessoas, ele descobriu que sua esposa era uma estranha. Uma mulher que talvez desconhecesse por completo. Quis chorar, quis perguntar, quis agir como um imbecil violento. Nada fez. Parou, junto com todo o planeta que saiu do equilibrado movimento constante e antes eterno. Dormiu e sonhou. No sonho era esmagado por um gigante sem face, sinistramente sem face.
Precisava saber mais. Qualquer um lhe diria para esquecer, porém era incapaz. Já sabia o suficiente, diriam. Já sabia demais! E ele discordaria com toda a certeza que só uma pessoa com seu orgulho ferido e seu amor roubado pode ter. Queria mais. Queria cada pequeno detalhe daquele ato odiável e asqueroso.
Na intenção de ficar e vasculhar a casa em busca de algo que lhe contasse um pouco mais sobre o adultério, disse a mulher estar doente. E talvez não mentisse. Realmente sentia-se febril, inquieto, nauseado e monomaníaco. Andou de um lado para o outro, revirou gavetas, arrastou a mobília e arrancou os próprios cabelos com suas mãos machucadas de tanto socar as paredes, que pareciam lhe atravessar o caminho só para irritá-lo.
Precisava se acalmar e sabia disso. Haviam várias garrafas de cerveja na geladeira e resolveu então embriagar-se. Ficou mais do que bêbado e um tanto mais calmo, entretanto essa quase calma logo o deixaria. Em meio ao caos que se tornara o quarto dos dois ele achou uma carta. Sim uma carta! Quão infantis e ridículos eles eram agindo como dois adolescentes apaixonados?
A carta, que tinha como remetente o Outro, continha milhões, bilhões, quem sabe? de juras de amor que fizeram seu estômago, embebido em álcool, revirar. Ao menos o puto também pedia desculpas pela marca que deixara e a perguntava se ele, o corno, notara.
Ali também haviam assuntos íntimos. Tão íntimos e particulares dela que nem mesmo ele, seu marido, tinha conhecimento. Sua sogra tinha câncer e ele não fazia ideia. Há quanto tempo se encontravam para que soubesse tanto, enquanto ele sabia tão pouco?
-Você trabalha demais.- ela disse uma vez com o desapego dos que sabem que o que foi dito será ignorado. E talvez, só talvez, isso fosse algum tipo de apelo; pensou.
Nunca antes ela havia lhe pedido sua opinião e no entanto, algumas semanas após a afirmação dela ser quase totalmente ignorada por ele próprio, ela lhe perguntou:
-O que acha do meu cabelo?- novamente o tom não cabia a frase. Era frio e desesperançado. Outro apelo? Ela havia cortado o cabelo e ele não tinha reparado.
-Ficou bom... Ficou sim...- ele nunca saberia mas já haviam se passado semanas desde que ela o cortara.
Talvez a culpa fosse dele. Quem sabe? Talvez ele não desse a atenção que todos precisam. Mas seria isso justificativa? Não. Ele estava agindo como um fraco novamente. Ela sempre o fizera agir como um retardado carente de ajuda. E, na verdade, ele era. Precisava dela para apoiar suas decisões e ideias. Precisava dela para legitimar seus atos. Sempre precisou. E ela, do topo de toda sua arrogância, não só sabia como se aproveitava de sua fraqueza de espírito.
Ah! Como ela se orgulhava de si mesma. Passava horas analisando cada pequeno detalhe perfeito de seu reflexo no espelho, tinha como passatempo corrigi-lo quando ele falava algo gramaticalmente incorreto e entrou em êxtase quando finalmente fora promovida a um cargo que lhe garantia um salário maior que o dele. O salário tornara-se uma espécie de confirmação incontestável do que ela sempre soube e nunca fez questão de esconder: era superior a ele.
A mataria! Mataria os dois! Estava decidido. Nunca ele saberia como chegou a essa decisão, porém sabia que era isso que queria. Já podia sentir o sangue quente nas mãos e imaginava milhões de cenários e formas diferentes de fazer o que queria. Já tremia de excitação.
Pegou a carta que o Outro a enviara e descobriu seu endereço. Com sorte eles estariam lá. Já era tarde e a essa hora, não fosse ela adúltera, estaria em casa com ele. No entanto esperou. Lhe daria uma hora para chegar e provar que o trânsito estava parado e que apenas se atrasara. Passadas duas horas sem sinal dela ele saiu de casa.
Dirigiu como louco. Desrespeitou todos os sinais e ignorou todos os que o xingaram durante o caminho. Por pouco não morreu, mas eles não teriam essa sorte. Não teriam essa sorte. Murmurava ele um tanto ofegante de ódio e inquietação.
Chegou. Parou o carro em frente ao que o endereço indicava ser o prédio que buscava. Olhou-se pelo retrovisor e viu o que era um retrato perfeito de um psicótico. Arrumou-se até que se parecesse novamente com o homem saudável que um dia foi e subiu. Ninguém o impediu ou sequer lhe dirigiu a palavra e mesmo assim tudo lhe era custoso demais. Tão confuso estava que sequer lembrava se sabia ou não o apartamento que procurava. Desceu e perguntou, enquanto explodia por dentro. Queria agir e queria que fosse logo.
Estava obcecado. Repassava cada pequeno detalhe várias e várias vezes. Fora levado até ali pela raiva, pela mágoa, pelo desespero e pelo amor; maior culpado de todos. No entanto hesitava. Não faria nada. Parou de súbito em frente a porta do apartamento que tanto lhe custou encontrar, deu meia volta e se foi. Não sem antes ouvir o que reconheceu ser o gemido dela.
Ao chegar em casa não fez questão de arrumar nada. Deixaria o caos exposto e permaneceria imóvel e mudo. Decidira-se a permitir que ela agisse ciente de tudo. Largá-lo ou não, escolha dela. Era indiferente. Acontece que depois de tanto acabou morrendo.
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